Fevereiro – do luto ao amor
Como já disse, fevereiro sempre
foi um mês significativo para tio Jó, mas o deste ano ultrapassou os limites!
No dia 2 reaproximou-se de um
amor. No dia 9, perdeu seu grande amor para a eternidade!
Ao longo dos anos, tio Jó
apaixonou-se pela grande ilha do Lago Baikal, onde passou muitos períodos de
férias. Viajava de avião até Irkutsk e de lá achava um meio de chegar a
Khuzhir. No sossego que tanto apreciava, escreveu poesias, cânticos e romances,
mas nunca uma paixão se igualou à que sentia por Doçura. Em todos os escritos
sobre ela, sempre havia lugar para ele confessar:
– Nunca pensei que amava tanto!
Tio Jó continuava sozinho na
praiazinha paradisíaca ao lado da Rocha do Shaman, perto de Khuzhir. Tinha passado
semanas de luto e de pranto, mas também de reconforto nas promessas divinas. Em
muitas décadas, 9 de fevereiro tinha sido o mais triste, pela perda
irreparável, porém 10 foi o mais precioso e consolador, porque a vida continua
e o Amor cujo convívio foi perdido para sempre foi transferido como amor vivo,
ansiando por durar para sempre. No dia 9, o Amor deu um duro golpe em tio Jó,
ao ser derrotado pela morte, mas no dia seguinte era o aniversário de uma vida linda,
atraente, exuberante!
O Amor – o verdadeiro! – dura
para sempre. Quando um alvo do amor deixa o convívio humano e viaja para o
além, o amor sagrado que fluía do nosso coração achará mais alguém que anseia
pelo Amor sem fim. Tio Jó chorou, jogou-se na campina esverdeada e não quis
comer nada durante o dia todo. No entanto, perto da noite uma voz que ele
conhecia de perto lhe disse suavemente no ouvido do coração:
“Filho, o Amor que tinhas por
Doçura agora está vivo só no teu coração, porque ela está rodeada do Amor incomensurável da Eternidade com Deus. Agora
dirige o teu Amor, o teu imenso Amor, o teu Amor santo e sem limites a alguém
que tu nem sabes, mas ela precisa da tua dedicação”.
Tio Jó abriu os olhos, enxugou
as lágrimas, olhou para os lados e a ninguém viu.
A voz afetuosa continuou:
“Filho, vai ao banco da Polônia que
tem filial no outro lado da rua principal, saca 3.500 slotzis e põe num
envelope com cara de presente. Não voltes ao teu quarto no Volna. Caminha
quatro quarteirões para oeste, dobra à direita e vai fazer um lanchinho no
restaurante do Hotel Philoxenia. Lá encontrarás uma garçonete que apelidaram de
“Loyal”. Ela é filha de poloneses brasileiros e está com imensa saudade dos
filhos, mas precisa do emprego.”
Aos olhos de tio Jó apareceu do
nada como que uma mulher jovem, muito bonita, mas, misteriosamente, um
sofrimento inexplicável era visível no semblante dela! Tinha uma touca xadrez
envolvendo o cabelo e um avental branco escrito em russo. A visão durou alguns
segundos e se desvaneceu. Quando tio Jó ia dizer “Não entendo, Senhor!”, a voz
continuou:
“Diz a ela que o Deus dela, que
é o teu Deus, enviou uma prova do insondável Amor divino, e que para isso
escolheu o servo mais obediente que está nesta cidadezinha. Diz a ela que te
escolhi porque agiste como Eu: ‘E Jesus,
tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim’. Dá a ela o
Amor extraordinário e irrepreensível que devotaste à tua saudosa Doçura nos
últimos quinze anos.
Quando o tio ia dizer que a garçonete
o julgaria um milionário louco querendo conquistá-la para aventuras inesquecíveis
entre as cobertas quentinhas de mais uma noite fria do Baikal, a resposta foi
instantânea:
“Eu vou dar a ela discernimento de
que o Amor que tens é o Meu, e que enchi o teu coração de Amor santo. Revelarei
a ela o pacto que tens comigo. Vai e ama como amaste Doçura! Vai! Ama como Eu
amo”.
Tio Jó estava tão longe!... Seu
coração doía intensamente pelo luto de uma perda do outro lado do mundo, mas...
Deus estava tão perto!...
O sol recém tinha ido deitar quando
o homem solitário entrou no pequeno restaurante e prontamente veio uma moça
sorridente saudá-lo:
– Dzien´ dobry!
Tio Jó estendeu a mão para cumprimentá-la
e já foi perguntando:
– Boa tarde! O que sei de polonês
é quase nada, mas tu falas português, não é? O teu apelido é Loyal?
Assustada, ela arregalou os olhos
e sentiu certo rubor subir-lhe pela face, enquanto o coração acelerava de medo.
Será que aquela criatura conhecia os infortúnios da vida dela? Ficou séria,
franziu o cenho e perguntou:
– Meu Deus! Como é que o senhor sabe?
Para compensar a perda distante
e irreparável, mesmo estando no Baikal, tio Jó não estava longe de tudo. Naquele
pequeno restaurante estava para testemunhar uma dessas aparentes ironias com
que a vida produz alegria em meio à dor. Tirou do bolso da japona o envelope volumoso,
segurou as mãos dela por uns instantes e, ainda segurando, entregou o volume estranho.
Loyal nem sabia o que fazer! Paralisada,
emudeceu. Ele continuou olhando firme para os olhos dela por uns seis segundos,
e lhe respondeu sorridente:
– Não tenhas medo, preciosa!
Como é que eu sei? Quem sabe é Deus. Ele sabe que hoje é o teu aniversário. Ele
sabe que só não voltaste ainda para o Brasil porque as necessidades são maiores
que a saudade dos filhos e ainda não pudeste comprar a passagem. Ele te ama e me
disse que te demonstrasse quão generoso é o Amor dele.
A jovem e bela mulher esboçou um
sorriso discreto, os olhinhos se arregalaram e a enorme emoção inundou a face. Tio
Jó comoveu-se, passou a mão carinhosamente naquele rostinho sofrido e limpou as
lágrimas furtivas, enquanto os seus próprios olhos também o traíram, ao chorar
de novo a dor da perda que agora se transformava em compaixão pela
desconhecida:
– Não chores, preciosa! O Amor de
Deus é muito mais que emoção ou sentimento e é muito maior que a nossa dor. Ele
é demonstrado por ações. Abre o presente dele!
Ao verificar, incrédula, que
eram 3.500 slotzis poloneses, Loyal abraçou tio Jó e chorou copiosamente. Quando
conseguiu controlar-se, levou-o ao computador para mostrar o que estava
consultando. Era um site polonês de viagens e havia uma promoção relâmpago. De Irkutsk
a Curitiba, com escalas, ela poderia viajar na semana seguinte. A promoção terminaria
nas próximas horas.
Loyal perguntou de novo:
– Como é que o senhor sabia?
– Eu já te respondi.
Então ela lhe mostrou o preço:
3.500 slotzis!
A solidariedade atenua as dores de quem dá e quem recebe.Como disse Ghandi: "Deus nao se atreve a aparecer para um faminto, a nao ser num prato de comida"... No desespero, receber o que se precisa alivia a vida!
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