Rute – minha irmã inesquecível (post original: 07/05/14)



Rute – minha irmã inesquecível

Estou novamente dirigindo sozinho, ao som de músicas agradabilíssimas. Meu gosto musical é bem amplo, mas varia muito. Hoje meu coração pediu e pus a tocar um pendrive com canções românticas, dos tempos em que música e poesia se uniam profundamente. Foi então que, ao começar “La paloma”, meu coração foi intensamente tocado pela saudade.

“Una canción me recuerda aquel ayer
Cuando se marchó en silencio un atardecer

Se fue con su canto triste a otro lugar
Dejó como compañera mi soledad.”

Com o coração apertado e repentina saudade, voltei fácil ao passado já distante!

Não, não é a dor de um amor que me deixou! É a saudade de uma amiga de verdade, de uma irmã que me conquistou com sua graça, sua meiguice tímida e seu sorriso contido e com sua voz suave e doce. É a saudade irrecuperável de uma moça alta, magra, muito afetuosa para com minha família e carinhosa para com meus filhos bem pequeninos.

Lembro, sim, com imensa saudade: “Una canción me recuerda aquel ayer".

Era domingo sombrio.

Naquele tarde, o pai e a mãe foram com ela conhecer nosso terceiro filho. Em dado momento, essa música tocava baixinho no escritório e a voz da minha querida amiga, minha irmã de verdade, começou a cantar com suave ternura:

Se fue con su canto triste a otro lugar
Dejó como compañera mi soledad.”

Quando ouvi o virtuosismo imenso que aquela voz por vezes mal deixava vir à tona, convidei para ouvir um coral encantador. Na época não sabíamos, mas era o coro dos hebreus escravos, de Nabucco. Acorrentados às margens do Rio Quebar, com harpas penduradas em salgueiros, desabafando as saudades do torrão adorável e do Rio Jordão, eles imploravam, numa oração magnífica, que o pensamento os ajudasse a suportar o sofrimento:

“Va pensiero, sul’ alli dorate…”

 Mais uma vez, ela balbuciou junto, com a voz encantadora. Nas primeiras vezes, imaginava-me em um imenso auditório (talvez o Scala, de Milão!), apreciando um coral quase indescritível.

Antigamente as palavras revelavam o que há em um coração. Hoje, mais até do que as palavras, os programas de rádio ou TV, as músicas, os e-mails ou os links que nos enviam, os Powerpoints que imploramos para alguém nos enviar… Como diz Eclesiastes 12.14, “Deus trará à tona toda obra, até tudo que está encoberto, quer seja bom quer seja mau”. Através dos anos, foi isso que revelou corações que pensavam enganar. Mas, naqueles idos de 1979, pouco disso havia.

A moça de comunicação fácil deixou transbordar a paixão que havia dentro de si. Sim, porque facilmente se vê o que há lá dentro. Imensamente interessado em conhecer a história por trás da peça de beleza genuína, perguntei à Rute o que ela imaginava ao ouvir. A resposta não surpreendeu muito, porque aquele coração amoroso estava cheio do Amor de Deus:

– Eu imagino o céu, com um coral de anjos cantando ao meu redor.

Rute era a minha querida secretária. Ajudou-me a realizar o sonho de catalogar e indexar as centenas de músicas cristãs e tornou mais fácil meu ministério de rádio. Com a ajuda dela, tornou-se menos penoso escolher hinos adequados às mensagens e outros conteúdos que meus programas veiculavam.  

Mas volto àquela tarde, porque outra revelação se fez ouvir. A irmã mais nova chegara recentemente à cidade, e também veio visitar-nos com a família. Na manhã seguinte, Rute estava lá, para continuar seu trabalho dedicado – mesclando-o com uma tarefa humanamente impossível: dar intenso apoio, como se fosse a irmã incansável e sempre sorridente do marido e da mulher, como se fosse tia dupla dos pequeninos. 

Mas o que não faz um coração cheio de amor?!

Em dado momento, tive oportunidade de fazer um comentário:

– Ontem percebi que tu és muito nervosa e que a tua irmã é extremamente explosiva.

Ela respondeu:

– Parece que tu estás estudando psicologia, não medicina!

Mas como a vida surpreende!

Poucos meses depois, o Teatro Guarani apresentou a peça inigualável de Verdi. O “Coro dos Hebreus” saudosos da pátria estaria cantando. Mas já era tarde! Com os pais, Rute se mudara para o norte do Estado!  

Se tivesse como, e se houvesse tempo, teria chamado para ela vir! Eu queria que a preciosa amiga estivesse ali, para assistir conosco. Não foi possível fazer contato, mas havia uma forma de homenagear a voz maviosa e a amizade imorredoura de minha querida secretária. Antes do espetáculo, passei toda a tarde tentando localizar a irmã dela, porque tinha combinado com a Izabel que eu compraria as entradas e a levaríamos para o espetáculo inesquecível, como uma espécie de redenção pela impossibilidade de convidar nossa amiga Rute.

Tudo em vão! A irmã também havia-se mudado, sem deixar pistas!

Quando o coro dos hebreus cantou, com as nuvens e o luar projetados ao fundo, com os guardas assírios fortemente armados avançando as espadas em direção a eles, na medida em que se levantavam sobre os joelhos e erguiam as mãos acorrentadas em direção aos céus, a plateia aplaudiu de pé! O talentoso maestro comandou “bis”! O povo novamente aplaudiu de pé!

No meu coração, a inenarrável alegria se misturava com a tristeza de não ter conseguido encontrar nossa amiga Rute! Ali era o lugar e a ocasião para ela estar presente!  Estávamos como que numa recepção celestial!

Não, não era um coral de anjos, mas a beleza de um salmo tratada com o talento artístico que Deus deu a Giuseppe Verdi!
Mesmo assim, vinham ao meu coração as palavras da amiga preciosa:

– Eu imagino o céu, com um coral de anjos cantando ao meu redor.

Mais que trinta anos se passaram. O marido e os preciosos filhos que Deus deu a ela tornaram-se amigos que aprendi a amar profundamente, mesmo raramente encontrando. E a voz dela eu ouvia sempre que ela me ligava, por bem ou por mal, para pedir oração por resgate das pessoas que esmagavam a sua alma com preocupações, fosse para testemunhar de livramentos dados a elas.

Tenho comigo sua voz gravada. Era 1978. Ela e a irmã gravaram dois hinos, ao som do meu órgão Saema, na igreja que o saudoso pai delas pastoreava mas a voz dela era o destaque inconfundível. Agora, quando ouço “La paloma” ou o “Coro dos hebreus”, sua voz e sua declaração afloram à minha mente – como hoje, ao dirigir sozinho.  

Já de volta, fui silenciosamente ao computador, liguei o som e pus-me a ouvir “Va pensiero”. Ouvi, ouvi e ouvi! Lágrimas insistiram em rolar pela face. A voz inconfundível da amiga preciosa não me saiu dos ouvidos. Como naquele evento magnífico - da apresentação da ópera ao vivo - hoje, ao ouvir o coral, não pude contar com a presença dela nem da irmã para representá-la.

Quis o destino terrestre separar-nos para sempre. Mas, enquanto rolam lágrimas de saudade, sei que hoje Rute não imagina um coral de anjos cantando ao seu redor. HOJE HÁ um coral de anjos no céu, cantando ao redor dela!

Na verdade não é bem isso! HOJE ELA CANTA maravilhosamente. A sua voz louva ao Senhor que ela tanto amava! 

HOJE o coral de anjos não canta ao seu redor O CORAL DE ANJOS CANTA COM ELA!

Sim, ela está lá, feliz, cantando!

HOJE FAZ UM ANO!

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