Segredos de tio Jó - a foto de Jé


Nasci em 2000, no dia 29 de fevereiro. Tio Jó é que merecia ter nascido nesse dia, porque o xará dele na Bíblia foi quem disse: "pereça o dia em que nasci". E não há dia mais perecível do que 29 de fevereiro.
Quando eu tinha doze anos, fui passar uns dias na casa dele. Chegamos tarde da noite e titio me tratou como em hotel cinco estrelas, conduzindo-me ao quarto de hóspedes, indicando o banheiro com chuveiro aquecido a gás, toalhas cheirosas dobradas na prateleira de vidro rayban, sabonete e demais acessórios. Disse-me que ansiou muito pelo dia em que eu o visitaria, e por isso preparou tudo com amor. Mas, no fundo, eu sabia que um homem não arruma a casa daquele jeito.
Também trouxe um lanche e pôs na mesinha, sempre falando meio baixo. Achei que fosse porque a tia já estava dormindo, mas, inseguro como era, não perguntei nada – e ele também nada disse a respeito. Só depois fiquei sabendo que tio Jó morava sozinho.

            Eu não imaginava que o dia seguinte estava para impactar a minha vida. Sábio como era, logo se deu conta de que eu estava entrando na puberdade. Sabendo que pais nem sempre orientam os filhos adequadamente sobre sexualidade, logo que amanheceu me levou à vasta biblioteca. Esticou-se, pegou um livro de capa dura e me pôs nas mãos, perguntando:
– Já leste?
O título era muito sugestivo: "O moço e seus problemas". Tio Jó continuava olhando para mim e disse:
            – Abre!

Fiquei um pouco constrangido quando abri aleatoriamente e havia o desenho das genitais de um rapaz e de uma moça, de modo que logo pulei para outro lugar, e então fiquei entusiasmado ao ver a fotografia de um velho treinador de aeroclube, pintado de um amarelo vivo, começando a subir de uma pista de grama.
Tio Jó foi sábio novamente. Ele conhecia na prática o texto de Eclesiastes 8.6: "para todo propósito há tempo e modo". Ele sabia que há o momento certo e a maneira correta de abordar as coisas.
Quando viu que fiquei entusiasmado, deu um tapinha no meu ombro e disse:
– Fica com ele, se quiseres ler. Enquanto estiveres aqui, é teu.

Em seguida, alterando a modulação e o volume da voz, sugeriu:
– Filho, aqui está meio abafado. Vamos pegar duas cadeiras e sentar ali no oitão.
– Tio, o que é oitão?
– É o canto da casa. Não se usa essa expressão na cidade, né?
Enquanto saíamos, sem crer que eu fosse responder, continuou:
– Vou ficar um pouco contigo e depois vou fazer algumas lides. Tu podes ficar sentado à sombra, curtindo a brisa maravilhosa, o ar limpo, o céu azul e o livro.
Tio Jó percebeu minha paixão pela aviação, e antes de sair dali, moveu o braço abrangendo certa extensão da fazendinha e disse:
– O meu sonho é preparar uma pista ali. Se andares nos caminhos de Deus, Ele te abençoará para realizares os teus desejos. Então, quando já fores piloto, poderás vir de avião para visitar-me. Deus também te guiará para conheceres uma moça adorável. Ela será tua namorada, depois vocês casarão e ela vai continuar sendo a paixão da tua vida.

Tio Jó fez um lindo sermão sobre sinceridade e direção de Deus, sem esquecer de me alertar para o fato de que todos somos frágeis e falhos, e que eu jamais encontraria uma pessoa perfeita, mas que, se ambos quiséssemos, poderíamos consagrar o nosso casamento a Deus, crescer juntos e ser bênção para muitas vidas, inclusive para nossos filhos e netos. Então disse algo de que não gostei:
– Eu não vou conhecer os teus netos, porque Deus vai me levar para si antes de eles nascerem, mas talvez conheça os teus filhos.
Aquela conversa era tão estranha!... Eu tinha só doze anos e não fazia muito que comecei a sentir atração pelas mocinhas. Além disso, assustava-me a ideia de que um tio tão querido fosse morrer.
- - -

Foi depois do almoço que prestei atenção àquele painel com tantas fotos. Minha atenção foi atraída por uma especial, que tio Jó havia destacado, colocando-a bem no centro do painel. Era uma moça alta, magrinha, com rosto simpático, mas de sorriso contido. Seu cabelo chegava ao ombro, era ondulado e tinha luzes. Seu olhar tendia para baixo, sugerindo uma pessoa introspectiva, profunda, de conversa discreta, talvez tímida, que pensava mais do que falava. Instantaneamente senti uma grande atração por ela, mas não tive coragem de perguntar especificamente. Fiz uma pergunta de sentido geral e já foi muito ousada para minha idade:
– Essas foram suas namoradas, tio?
Tio Jó riu muito, antes de me responder, ainda interrompendo com o riso:
– Filho, tu não fazes ideia de como era diferente o meu mundo! Havia respeito e lealdade. Dificilmente alguém era desses que hoje em dia fazem coleção de parceiras, e as moças não eram dessas que marcam encontros com homens em quartos de hotel, ou mesmo em motel. Não, filho… essas aí são algumas das pessoas de quem fui mentor.
– Mas essa aqui… por que o senhor pôs em destaque?
            Com os olhos brilhando e um sorriso muito feliz, tio Jó disse com uma voz que não escondia a imensa paixão:

– Aaaaahhhh! Essa é a Jé! Minha querida Jé! O grande amor da minha vida! Éramos almas gêmeas.
– Ué, tio! O senhor disse que elas não são suas namoradas!
– E não são!
            Pareceu-me contraditório, mas, sem entender, quase pensei em voz alta:

            – Que engraçado! Jó e Jé… daria um casal interessante… Fica bonito quando o casal tem nomes parecidos: João e Joana, Pedro e Paula, Isidoro e Isabel, Eli e Lizete, Eliseu e Elizabete, Noé e No…

            Tio Jó me interrompeu:

             – Filho, eu amava Jé como filha. Fiz tudo que pude para investir na vida dela. Queria que crescesse…

            Ele mesmo interrompeu o pensamento e disse:

            – Vou te contar um segredo, mas é para guardar a sete chaves. Combinado?

            Concordei e ele prosseguiu:

             – Deus me deu um dom sobrenatural, o de ver o futuro das pessoas. Não é um dom profético, mas um dom de ver o potencial. Por isso, dediquei muitos anos de minha vida investindo como mentor de diversas pessoas. Aconselhei, intercedi, clamei de rosto no chão por algumas delas… Enfim…

            Tio Jó estendeu as mãos para os lados, para a frente e para cima, devagar, como quem queria significar com a linguagem corporal algo grande, imenso, crescente, e retomou, com enorme ênfase no tom de voz:

            – Filho, AMEI… AMEI… AMEI algumas…

            Tio Jó deu um profundo suspiro e continuou:

             – Queres saber? Dispus-me a dar a vida, se isso fosse o preço, para Deus restaurar a vida de algumas delas… Se Deus dissesse que era indispensável, eu daria a vida para que elas desenvolvessem o potencial que Deus mostrou, de tão vasto…

            Tirou o chapéu de palha com uma das mãos e coçou a nuca com a outra, antes de continuar:

             – Quem ama se dispõe a dar a vida pelas pessoas amadas. Assim eu amei Jé.

            Quando questionei que ele acabara de me dizer que não era sua namorada, respondeu-me:

            – Não é, nunca foi e nunca será. Eu a amei como filha e sei que ela me amava também. Há coisas que unem as pessoas. Não sei se ela discernia o sentido do meu amor por ela.

            Interrompi:

            – O senhor me disse que nenhuma dessas foi sua namorada. Então por que a foto da Jé se destaca entre as outras e o senhor fala dela com… com… parece que ainda sente tanta paixão…

            Eu não ainda não havia estudado neurolinguística, como depois faria por incentivo de tio Jó, mas percebi quando ele baixou a cabeça e a tristeza invadiu sua fisionomia. Apareceram rugas na testa, os olhos voltaram-se para baixo, os lábios se crisparam e passou a mão pela testa umas três vezes. Então, depois de um profundo suspiro, o tio me disse:

             – Foi a última moça em que investi meu tempo. Para mim, ela era a “pequena princesa”. Um dia, levei-a para voar e precisei fazer um pouso forçado, num lugar quase deserto. Enquanto estávamos ali, aguardando socorro, lembrei-me de Saint-Exupèry e do Pequeno Príncipe, porque aconteceu o impossível: um rapazinho simpático se aproximou, sabe Deus vindo de onde, e disse que Jé era “a rosa única no mundo” que ele sempre desejara encontrar. Em seguida dirigiu-se à jovem, convidou-a para ir com ele e insistiu que não haveria nova oportunidade.

             Tio Jó pôs a mão no meu ombro e disse:

             – Sabe, filho, foi amor à primeira vista. Jé disse sim, agradeceu-me por ter ensinado muito e por amá-la tanto. Por fim, pediu-me para deixar ir, porque aquele era o “pequeno príncipe” com quem ela sempre havia sonhado e do qual sempre me falava. Enviou um beijo para os pais e assegurou que logo voltaria para visitá-los e que eles ficariam muito felizes. Respondi-lhe que eu não era dono da vida dela, mas queria que ela fosse com o rapaz falar com os pais; mas que, se Deus lhe dera o encontro com o príncipe, ela podia contar com minha bênção.

              Perguntei a tio Jó se ele deixou a moça no deserto com o rapaz, como o piloto deixou o Pequeno Príncipe.

              – Não, filho. Os dois me abraçaram afetuosamente, deram-se as mãos e começaram a distanciar-se em direção ao pôr do sol dando passos firmes. Minutos depois consegui fazer o avião funcionar. Decolei e prossegui na direção em que eles foram. Circulei sobre aquele campo imenso. Havia algumas árvores aqui e ali. Elas lançavam grandes sombras sobre a planície e a luz do sol banhava aqueles campos com uma luz amarelada, já empalidecida como que pelo sono. Pena, eu não tinha levado celular nem câmera, porque era um momento mágico. Mas um piloto tem que se manter atento aos instrumentos. Então vi que a gasolina estava pouca. Como a noite se aproximava, tive que optar entre cair de novo ou rumar de imediato para o aeroclube. Só o fato de eu estar aqui te contando já indica qual escolha fiz.

             Então perguntei ao tio se nunca mais tinha tido notícias. E se levantou bruscamente e me disse:

             – Vem cá!

             Abriu a porta de uma sala pequena em que eu ainda não tinha entrado. Ali não havia tesouros, mas ele já me dissera que ali guardava o seu tesouro. Eram coleções como de canetas, chaveiros e outros pequenos objetos que ele já havia me mostrado, contando várias histórias sobre lugares e viagens que tudo representava. Mas, desta vez, abriu um armário e, ao lado de um conjunto de louças lindas, com pintura de tulipas, mostrou-me duas canecas irmãs. Numa, estava pintado o rapaz que ele achava parecido com o pequeno príncipe; na outra, com o sorriso tímido, Jé.

            Perguntei onde havia comprado. Respondeu-me que encontrou na caixa postal do correio da cidade, logo depois daquele voo histórico. Ressaltando que o pacote não tinha endereço dos remetentes, tirou um bilhetinho de dentro, desdobrou carinhosamente e me deu para ler:

            “Do casal de pequenos príncipes para a pessoa que mais amamos”.

            Tio passou as mãos no canto dos olhos, secando umas lágrimas teimosas, e me disse:

            – Tudo que me resta dela é esta foto, filho!

Levantou-se de repente, ligou o computador, acessou a internet e, abriu o site do youtube e procurou por “Bookends - Simon and Garfunkel HQ”. Depois abriu www.sing365.com, e pesquisou a letra de “Bookends Theme”, cantada pelos famosos britânicos: 

A time it was
And what a time it was, it was
A time of innocence
A time of confidences
Long ago it must be

            Na parte final, tio Jó cantou junto, e então as lágrimas rolaram sem discrição:

I have a photograph
Preserve your memories
They're all that's left you  

           Passou as mãos nos cantos dos olhos novamente e, com a voz meio entrecortada pela emoção, confidenciou:

           – Filho, talvez nunca eu tenha encontrado música tão real. A letra é viva para mim. Vê só:

“Eu tenho uma fotografia.
Preserva tuas lembranças.
Elas são tudo que me resta de ti”. 

          Limpou mais uma vez o canto dos olhos, levantou-se, deu um profundo suspiro e, mudando por completo para um tom de voz mais animado, convidou-me: 
          – Filho, vamos dar uma caminhada. Isso foi só um sonho de Natal. Um sonho, apenas isso.

          Pensei comigo: realmente era muito bonito para ser real. E, na minha inocência de adolescente, concordei com o tio, balançando a cabeça. 

          Foi só um sonho de Natal.

          É, né? Sei!…

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