Segredos de Tio Jó - A CASA SECRETA
Nunca
entendi por que tio Jó investiu numa coisa como aquela naquele fim do mundo! Na
verdade, pra lá do fim do mundo! Morar no interior de Itaqui, espremido num
pedaço de terra relativamente pequeno, enquanto à sua volta só há fazendas
gigantescas, tem lógica?
Como
chegamos à noitinha, não decifrei que estava chegando a uma das propriedades mais
esquisitas do mundo, mas na manhã seguinte fiquei espantado. Eu era um adolescente
tímido, mas tio Jó era muito simples e amigável. Quando saímos do interior da
casa e vi que havíamos dormido naquilo ali, perguntei:
– Tio!…
Nunca vi uma coisa assim! Por que o senhor veio morar num lugar tão esquisito?
Só havia duas
casas no sítio. A primeira, de aparência normal, foi construída perto da
porteira de entrada, era ocupada pela família do seu Turíbio e recepcionava quem
chegasse. O caseiro gozava de plena confiança de tio Jó. Era pago com generosidade
e tratado com regalias. Assim tio Jó o estimulava a manter-se residindo ali com
a família, inclusive ao proporcionar que os filhos dele estudassem na cidade,
quase 20 km a noroeste.
Além do
salário, da moradia, do carro robusto e de outras comodidades incomuns no
interior, o caseiro tinha trator e demais equipamentos, bem como liberdade para
plantar, colher e criar animais. As plantações eram dele, porém as árvores
frutíferas eram compartilhadas. Mais do que justo. Afinal, tio Jó havia
plantado a maioria das que já frutificavam. O que seu Turíbio comercializava
era para si próprio e para a família. Havia só uma exigência: quando tio Jó
viajasse, a fazenda não podia ficar deserta.
Agrupadas entre
as duas casas, como amigos confidenciando, havia três torres eólicas baixas. O
vento que girava as três grandes hélices com eixo vinte metros acima do chão respirava
alto, como um gigante dormindo, e era transformado em eletricidade por uma
usina subterrânea que gerava energia de sobra para a fazenda, mas tudo que se via
era uma simples colina com a superfície ornamentada por diversas plantas de
pequeno porte e grama alta. O acesso era por uma espécie de alçapão camuflado,
coberto por gramíneas de várias espécies. Entre a instalação e as casas havia dois
túneis amplos, por onde passavam os fios e permitiam a passagem de pessoas, mas
suas portas à prova de fogo no meio e nas pontas eram trancadas por um sistema
inovador.
A quarta
torre era diferente, como as antigas torres de telecomunicações. Ali estavam as
antenas de internet, rádio, televisão e telefone, com instalações e
equipamentos eletrônicos igualmente subterrâneos.
E aí está o
que me espantava: por que uma pessoa que viajava com frequência resolveu morar
literalmente num “buraco” daqueles?
Sim, porque
a casa principal era mesmo a coisa mais estranha! Só se percebia como que mais uma
colina suave no terreno. Na minha timidez juvenil, não tive coragem de comentar,
mas, dependendo de onde se olhava, as duas colinas bem torneadas (a da usina e
a da casa) lembravam o formato bem torneado do peito feminino. Então, ouvindo o
sopro do vento nas hélices, era como se fôssemos minúsculas formigas caminhando
sobre a roupa de uma gigantesca mulher dormente!
Pela quase
invisibilidade, os aposentos amplos e frescos no verão, mas imunes ao frio
intenso no inverno, não só eram protegidos das intempéries como da insegurança
terrível que o Brasil enfrentava naquela época. As janelas mais pareciam
escotilhas fortalecidas por vidros grossos e esquadrias metálicas pintadas de
um verde cor de grama. Plantas ornamentais circundantes dissimulavam a existência
delas. A porta social e a de serviço pareciam portões de um forte, com grossas esquadrias
de ferro também verdes. A porta da garagem era camuflada por uma espécie
de jardim suspenso dominado por gramíneas de folhas longas, iguais às plantadas
ao longo da “parede” que a rodeava. Isso lhe dava contornos basicamente
imperceptíveis, uma vez que se conformavam com a inclinação do terreno e só se conseguia
distinguir depois de estar familiarizado.
Naquela manhã,
quando saímos pela primeira vez a caminhar um pouco entre os pinheiros e ousei
perguntar, tio Jó explicou:
– Meu
filho, concretizei algumas fantasias depois que voltei quase secretamente do
autoexílio na Sibéria. Depois de morar um período em Igarka e na maior ilha do
Lago Baikal…
Parou de
repente e perguntou:
– Conheces
o romance que deu o Prêmio Nobel a Aleksandr Solzhenitsyn?
Prosseguiu:
– Grande
escritor! Visitei as cidades do Arquipélago Gulag e parte dos campos de
concentração. Depois, quando resolvi voltar para o Brasil, passei pela Lituânia
e visitei o Soviet Bunker, onde revivi de forma teatral a dura realidade que os
dissidentes do regime enfrentaram durante o domínio soviético.
Pensei que
tio Jó estivesse divagando, mas ele explicou:
– Cansei da hipocrisia
social. Desejei ardentemente isolar-me de todo mundo, inclusive dos parentes. É basicamente impossível, mas pelo menos construí o meu refúgio secreto. Aqui brinco
de ermitão e dedico o que me resta de vida à busca paradoxal: contribuir
com a humanidade publicando o que aprendi sobre os seres humanos.
Afirmou que
seus últimos anos seriam produtivos cultural, moral e espiritualmente, mas sem
muitas ligações pessoais, e então me surpreendeu:
– Eu te trouxe aqui porque fiz um testamento e te
nomeei herdeiro de todo o meu legado como escritor.
Naquele dia,
conheci tudo que pude a respeito do sítio incomum. Quando tio Jó me convidou
para dormirmos e fui novamente para a minha suíte, pensei que as surpresas
haviam terminado, mas às quatro da madrugada pareceu-me ouvir vozes.
Meio
apavorado, fiz questão de não levantar, mas procurei ouvir.
Conto assim
que puder.
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