Segredos de tio Jó - ANOITECENDO
Visitar tio Jó
influenciará o meu futuro para sempre. Passar as férias com ele foi um festival
permanente de surpresas. Afinal, um poeta que também gostava de compor música e
letra de canções românticas só podia ser assim.
Ao final de um entardecer,
encontrei sobre a mesa da biblioteca certa poesia diferente. Ao perceber o triplo
soneto, surpreendi-me de que tio Jó tivesse escrito uma poesia de amor com 42
versos, e mais ainda quando depois mostrou outra de 96!
Eu havia entrado na
adolescência e o interesse pelas mocinhas começava a ficar vivo, mas o que
conhecia do assunto não passava do que percebia no ambiente familiar pacato em
que estava crescendo e das conversas às vezes maldosas que ouvia na escola. Agora,
um súbito arroubo de crescimento suscitou interesse pelo texto poético. O
título é “Último adeus” e começa assim:
“Finalmente decidi:
Queimei as pontes, querida,
Que, nos caminhos da vida,
Me levavam sempre a ti.”
Queimei as pontes, querida,
Que, nos caminhos da vida,
Me levavam sempre a ti.”
Àquela altura eu
ainda nem sabia que tio Jó tivesse tido alguém na vida, mas a poesia revelava o
profundo amor de quem decidiu deixar sua amada em liberdade, porque havia mais
alguém! Não me sentia confiante para fazer certas perguntas, mas indaguei:
– Tio, pra quem o
senhor fez esta poesia?
Tio Jó mostrava ser
atencioso e profundo, porém só mais tarde vim a compreender o aspecto mais
paradoxal de sua personalidade: embora muito racional em relação a coisas, ele
era sentimental em relação a pessoas.
Na ocasião não
entendi muito. Só agora, décadas depois, compreendo a profundidade do que ouvi naquela
tarde. Ao invés de responder, tio Jó abriu a porta e me convidou para sair ao
pátio:
– Filho, estás vendo
a beleza do entardecer? Pode parecer triste que o dia está findando, mas é o
ciclo da vida. Para ti, não faz muito que a vida amanheceu, mas, como o dia
declinando, a minha vida também chegou ao entardecer.
Pensei comigo: ele
está me enrolando e não vai responder o que perguntei. Mas ele estava a
caminho:
– A destinatária da poesia
está indo na mesma direção. Ainda não é o crepúsculo, mas na vida dela também a
tarde começa a declinar. Nicky Cruz escreveu “Solitário, mas nunca sozinho”. Como
eu, ela está solitária. Diferente de mim, ela está sozinha.
O tio olhou significativamente para
o lado, como quem pensa muito no que vai falar, e passou a mão na cabeça. Como
quem fala consigo mesmo, perguntou:
– Ou será o
contrário? Acho que solitário é quem está na solidão. Isso pode acontecer com
quem está sozinho e com quem está cercado por multidões.
Depois tio Jó contou-me
um pouco de sua mocidade e voltou à poesia:
– Bem… A moça para
quem escrevi isto não está apenas só. Está solitária. Vês aí a data? Escrevi há
décadas.
Depois de dizer onde
ela mora e do quanto se queriam bem, perguntei por que não voltam a
relacionar-se. Respondeu-me que uma vez a alertou sobre o risco que corria por
desobedecer a Deus e aproximar-se de pessoas perversas. Daí para a frente,
nunca mais ela quis falar com ele.
Prosseguiu:
– Aprendi no
relacionamento com Deus que livre arbítrio é sagrado. Se ela não quer, eu
respeito. Sei que é o melhor, porque ao semear respeito pelos outros também vou
colher isso.
Tio Jó havia
preparado chimarrão e estávamos sentados no banco rústico perto do oitão. A
noite já começava a banhar os campos, derramando uma brisa fresca ao nosso
redor. As estrelas mais brilhantes começavam a surgir. No horizonte, a lua
cheia espiava devagar. Eu não conhecia a moça do passado do tio, mas começava a
sonhar com o dia em que minha vida também teria um amor. Inspirado pela
conversa, perguntei o que ele diria à moça, se pudesse.
Depois de um suspiro
profundo, respondeu-me com entusiasmo vivo na voz, com olhos que pareciam
brilhar mesmo no escuro, e com gestos expressivos das mãos:
– Aaaah! Eu lhe
diria com muito amor: olha para Jesus, o autor e consumador da fé; põe em
prática as tuas dezenas de leituras da Bíblia e vive por fé; honra a memória de
teus pais e confia: estabelece sonhos e objetivos, porque o amor de Deus por ti
não diminuiu. Ele quer que invistas num viver coerente, a fim de Ele te dar
como retribuição um apreço que não compreendes e uma estima que nunca
imaginaste possível!
Depois de uma pausa
para servir a última cuia de chimarrão sob as estrelas daquele anoitecer,
completou:
– Deus nos salva por
amor, mas, se O agradamos, Ele “reage” com apreço pelo nosso modo de viver. Se nos
aproximarmos ainda mais, Ele nos estimará. Então, do amor podemos chegar ao
apreço, e do apreço podemos conquistar a estima. Na parábola do filho pródigo,
o pai amou o desviado e correu ao encontro quando ele voltou. Então declarou ao
mais velho: “tudo que eu tenho é teu”.
Quando entramos, a
lua já estava alta e a brisa tinha ficado mais forte. Transformando-se num
vento razoável, agora sussurrava forte nas hélices da usina eólica. Tio Jó desligou
as luzes do pátio, fechou a porta e, mais uma vez, deu-me uma lição de vida:
– Da mesma forma como
fechei a porta por dentro e impedi o frio de invadir nossos aposentos, a moça
que amei me rejeitou e fechou o coração por dentro. Escolheu pôr-me para fora e
eu a respeito, porque o Amor respeita. Nunca mais bati nem baterei para ela
abrir. Porém o amor de Deus é muito maior que o meu, e Ele diz: “Eis que estou
à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir, entrarei em sua casa e
cearei com ele, e ele comigo”.
Naquela noite custei
muito a dormir, pensando em declarações de Tio Jó:
– A tua vida está no
amanhecer. A minha está anoitecendo. A moça que amei está no crepúsculo. Não
sabemos quanto tempo nos resta, mas o que Deus promete Ele cumpre. Os planos
que me revelou serão cumpridos. Os planos que tentou revelar a ela, também – se
ela deixar!
A presença de Deus
ainda preenchia cada átomo do interior daquela casa e, estranhamente, através de meus
pensamentos vinha a imagem de uma moça solitária, distante no espaço e no
tempo. De joelhos dobrados à beira da cama, orava com lágrimas, rogando que
Deus a restaurasse na Sua Presença. Ao mesmo tempo, do outro quarto eu ouvia
tio Jó orar:
– Senhor, graças
pela Tua presença viva em minha casa.
Depois continuava:
– Manifesta-te na
casa dela, Senhor! Pela Tua presença viva, endireita a vida dela e faze sentir
o Teu amor! Dá-lhe a convicção de que Tu não a rejeitaste! Quando chora na Tua
presença e implora por perdão, perdoa-a! Dá-lhe certeza de que ninguém merece o
Teu amor, mas faze anelar pelo Teu apreço! Faze buscar a Tua estima!
Quando ele orava
assim, vinha-me a visão de uma moça enxugando-as lágrimas com as mãos,
levantando-se de sobre os joelhos, apagando a luz, envolvendo-se nos cobertos
grossos e dando graças pela presença de Deus em seu quarto, até adormecer,
repetindo:
– Senhor, graças pela Tua presença!... ... Solitária, mas nunca sozinha!
... Sozinha, mas nunca solitária!
... Senhor, graças…
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