Segredos de tio Jó: lição de foco e persistência
Segredos de tio Jó: lição de foco e
persistência
Naquele dia o sítio no interior
de Itaqui parecia Curitiba: inesperadamente amanheceu sombrio e chovendo,
chovendo, chovendo... Nem os animais
quiseram saber da liberdade e preferiram suas tocas e ninhos ao ambiente
natural! Se na opinião de meus pais a cidade já era um fim de mundo, que dizer do
sítio em dias chuvosos?
O plano de tio Jó, na véspera,
era ir à Argentina comigo, alguns muitos quilômetros a oeste. Mas, com a chuva
imprevista, nem saímos de casa.
Mal tendo encontrado meu
anfitrião três ou quatro dias antes, pensei comigo:
– Que coisa aborrecida! Ao invés
de pela primeira vez pisar em outro país, vou ter que aturar os gostos
rabugentos desse velho chato!
Eu não imaginava quem era tio Jó!
Eu o julgava como sendo um velho, mas meu preconceito é que não era novo. Biologicamente
ele não era mais um jovem, mas transbordava de cultura e tinha disposição
invejável para repartir pacientemente um pouco da sabedoria admirável –
justamente com o sobrinho ignorante, mal saído das fraldas!
O que é pior, eu era um péssimo
exemplo de negativismo; tio Jó, uma das pessoas mais positivas e otimistas que
tive o privilégio de conhecer, e este permanece como um dos aspectos mais ricos
da sua influência sobre mim. Enquanto eu resmungava por dentro, desejoso de não
ter vindo visitá-lo, ele usou o dia chuvoso para ensinar-me coisas que me
enriqueceram para sempre.
Meu gosto musical era péssimo. Eu me achava o
máximo escutando aqueles ritmos idiotas, quase sem métrica, com muita percussão
e sem melodia harmônica nem poesia alguma na superficialidade das letras
grosseiras – como em “Loira Burra”! Talvez o melhor de meu gosto fosse
“Serenata Inesquecível” e “Amor de Mãe”, do Teixeirinha!
Sofisticação musical? O que era
isso pra mim?
Qualidade artística? Fala sério!
Aquele dia chato, escuro e
chuvoso transformou-me. Tio Jó dedicou-se a mostrar-me a profundidade da poesia
do canto lírico e a beleza artística da harmonia entre a letra e a música, exaltando
o virtuosismo de interpretações apaixonadas. Chamou minha atenção para o
talento assombroso de Verdi e outros compositores. Ilustrou com o Concerto nº 2
em Si bemol de Beethoven e o 26 de Mozart. Nos primeiros momentos, como
adolescente rabugento e desinteressado, continuei catando fotografias ao
deus-dará em livros antigos da enorme biblioteca, mas então tio Jó fez um
comentário impactante:
– Sabe, filho? Estas são pérolas
que achei ao garimpar uma peça musical inigualável transmitida pela LRA de
Buenos Aires, no entardecer de dois de junho de 1967.
Pensei: que memória inútil! Cinquenta
anos procurando e ainda não desistiu?
Tio Jó prosseguiu:
– A Rádio Nacional deles
transmitiu uma peça para piano e orquestra. Foi a composição mais linda que
ouvi até hoje! Como que hipnotizado, prestei atenção a cada compasso quase sem respirar.
Faltando um minuto para as sete da noite, a peça musical inigualável terminou e
o locutor comentou em típico espanhol portenho: “acabamos de oír...”
Tio Jó silenciou e perguntei:
– Tio, “acabamos de ouvir”... o
quê?
– Aí é que está! Se eu tivesse
ouvido talvez hoje não entendesse de clássicos.
A 650 km de Buenos Aires, a
rádio só pegava em ondas curtas, e isso garantia perdas! Quando ele anunciou
“acabamos de oír...” a onda de rádio fugiu e nunca fiquei sabendo! Então me
senti motivado a tomar uma das decisões mais persistentes da minha vida: foquei
em comprar todos os discos de música erudita que meu orçamento permitisse.
Tio Jó acrescentou que o
interesse por música de qualidade começou no Chuí, quando os amigos do Exército
ouviam o SODRE, que transmitia música culta o tempo todo.
– Tio, o que é SODRE?
– É o “Servicio Oficial de
Difusión Radio Eléctrica”, de Montevidéu. A LRA argentina e o SODRE uruguaio eram
os equivalentes da Rádio MEC do Brasil, porém com nível de qualidade cultural
incomparável.
Tio Jó continuou:
– Hoje tenho milhares de CDs e
MP3, mas continuo procurando aquela música maravilhosa incansavelmente!
Tio Jó dosava a imensa cultura
musical e então deu-me uma aula sobre a capacidade interpretativa inigualável
de Pavarotti, com suas belas nuances de volume da voz em “Una furtiva lacrima”,
apontando para a profundidade melódica e poética do compositor:
– Donizetti aborda a lágrima
traiçoeira que escapou dos olhos da jovem alegre, cheia de amor, e o cantor desabafa:
“que mais quero? Por um só instante sentir o pulsar do belo coração e por um momento
tornar os nossos suspiros como um só”. Então chega ao auge dos sentimentos:
“Céus! Posso morrer! Não preciso de mais nada! Posso morrer... sim, posso
morrer... posso morrer... de amor!”
Então, inesperadamente,
silenciou, levantou-se e foi para a porta externa. De costas para mim, vi que
chorava silenciosamente, fazendo jus à música. Disfarçava as lágrimas com ambas
as mãos, como quem coça as pálpebras. Sua dor secreta me comoveu, porém eu era
tímido demais para perguntar o porquê.
A linda música de Donizetti
oculta o motivo da dor do coração da moça, e tio Jó escondeu a causa de sua
lágrima furtiva. Seria pela lembrança de que seu primeiro amor foi roubado por
um “amigo”? Seria a dor de saber que sua primeira amada nunca mereceu a sinceridade
que ele lhe devotava e que o pulsar do coração querido nunca se sintonizou com
o dele, e nem o fará, porque agora nos deixou para sempre?
Tio Jó disfarçou, voltou para a
sala e, antes de envolver-se com os afazeres, disse:
– Filho, meio século de busca
ainda não me satisfez. Talvez o melhor foi que aprendi a perseverar quando
tenho um objetivo. Melhor ainda, posso compartilhar este aprendizado contigo e
com as demais pessoas que amo – e quando se ama de verdade o amor é para
sempre. Encontrar aquela música continua sendo o sonho artístico e cultural da
minha vida. Pode ser que, no dia em que a encontre e a tenha ouvido muitas
vezes o meu foco passe a ser outro. Porque, se eu não estabelecer novos
objetivos, poderei dizer como nesta expressiva melodia:
– Que mais desejo? Não preciso
de mais nada! Agora posso morrer, sim, morrer de amor!
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