Segredos de tio Jó - o adeus a Leda


Segredos de tio Jó: o adeus a Leda


Pois é! O sítio de tio Jó tornou-se inesquecível para sempre desde minha primeira visita àquele interior do fim do mundo. Era assim que meus pais consideravam Itaqui, por ser perto da fronteira gaúcha com a Argentina.

Estávamos na sala, depois do almoço. As manchetes do noticiário da televisão só anunciaram violência, desonestidade e más notícias. Tio Jó disse que não valia a pena encher os ouvidos de mais lixo e então ligou o equipamento espetacular de áudio do computador principal da casa. Quando começou a tocar com alta fidelidade uma peça musical excelente, daquelas que só pessoas muito sofisticadas aprendem a saborear, foi que vislumbrei a profundidade do impacto que tio Jó produziria na minha vida.
Devo a ele o apreço por música erudita, o gosto pela natureza, o imenso amor pelo próximo e a profunda sensibilidade. Gostaria de continuar convivendo até hoje, porque aprenderia ainda mais e seria um homem profundamente influente e grande inspiração para muitos.
Com sua capacidade interpretativa inigualável, Pavarotti cantava “Una furtiva lacrima”. Tio Jó explicou a profundidade melódica e poética:
– Donizetti canta a lágrima traiçoeira que escapou dos olhos da jovem alegre, cheia de amor. O personagem continua: “que mais quero? Por um só instante sentir o pulsar daquele belo coração e por um momento tornar a nossa respiração como uma só”. Então desabafa: “Céus! Posso morrer! Não peço mais nada! Posso morrer... posso morrer... morrer... de amor!” 
Então tio Jó levantou-se e foi para a porta externa. De costas para mim, vi que chorava silenciosamente, fazendo jus à música. Disfarçava as lágrimas com ambas as mãos, como quem coça as pálpebras. Sua dor secreta me comoveu, porém eu era tímido demais para perguntar o porquê.
Anos depois, ao ler um daqueles tesouros ele me legou no testamento revelava as lágrimas indiscretas. Em 29 de janeiro, o diário confessava:

Hoje faz quinze anos daquele sonho impressionante em que a moça que mais amei estava curvada sob o peso das dificuldades e desafios da vida. Quando servi no Chuí, meus companheiros mais amigos eram Dutra, Radunz e Godoy. O que eu não imaginava era descobrir, ao longo dos meses, que um desses “amigos” estava para roubar o meu grande, único e volúvel amor!
Duas estudantes sempre andavam juntas e meu coração se dividia, mas fiz a abordagem indireta: querendo despertar interesse e ciúmes na moreninha encantadora, perguntei qual o nome da loira. Foi então que Otília me disse que era Leda e que tinham quatorze aninhos!
Passaram-se os meses, os anos e as décadas, mas ainda recordo a voz macia, meio brasileira meio uruguaia, que me encantava. E como esquecer? Na primeira vez em que fui ao cinema, Leda foi comigo e assistimos juntos ao magnífico filme russo Heiniliki! Daquela noite magnífica ainda canto na voz de Mario Lanza: “This is a night to remember... First embraces, first caresses...”
Com o tempo, volta a dúvida apaixonada: o que me encantou mais profundamente foi aquele primeiro filme de amor inocente ou os beijos tímidos do primeiro amor?

Hoje, décadas depois, espreguicei-me no sofá e pus a tocar a delicadeza do segundo concerto de Brahms para piano e celo. Então ouvi aquela voz sutil: meu Senhor sussurrou que naquela manhã minha Leda inolvidável havia deixado para sempre de sofrer, no hospital de Rio Grande.
Outrora gostávamos tanto de “La Paloma”! Hoje não me restam motivos para cantar que “una paloma blanca me canta al alba”! Cabe-me prantear que “se fué con su canto triste a otro lugar”.
Curtíamos juntos a triste suavidade de “Candilejas” e alimentávamos o sonho de que “yo te esperaré una eternidad”. Agora não há mais a ilusão de que “y si alguna vez quieras volver...”. Melhor eu enfrentar a realidade: “sé que nunca volverás...”.
Quando me despedi da primeira temporada no Chuí, Leda cantou sua primeira música outra vez e seus olhinhos apaixonados me perguntavam: “Díme cuando, cuando, cuando... Díme cuando volverás!”
Meses depois eu voltei, mas ela já tinha dado o coração a outro!
Ou será que nunca fora meu?
Anos depois, já era piloto e sobrevoei o Chuí mais de uma vez. Não senti saudades.
O amor com que a amei continuará sepultado com ela e as decepções que a vida lhe retribuiu estarão para sempre sepultadas com as memórias do amor que lhe devotei. O passado não ressuscita e ela nunca mais voltará! Mas este concerto de Brahms a ressuscitará com dor no meu coração e banhará de lágrimas os meus olhos toda vez que eu me lembrar dela e cantar “una furtiva lacrima”.
Outro dia ouvia Pavarotti com meu sobrinho e uma saudade misteriosa e repentina me trouxe Leda de volta. Aquela castelhaninha esbelta, de vestido branco, derramou minhas lágrimas pela última vez. 
Adeus, Leda querida! Adeus, meu primeiro amor!

Agora releio e entendo as lágrimas de tio Jó, mas a pergunta continua: foi por causa da perda que ele escolheu a solidão para o resto da vida?

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